nos últimos tempos, a página em branco têm me assustado e minha mente parece enevoada, distante. o coração, pesado. não sei bem como começar esse texto e percebo que isso acontece com uma certa frequência. ao sentir demais, me fecho na minha própria concha. procrastino processar os sentidos e tudo se mistura até virar uma massa desconexa sem letra maiúscula nem ponto final.
o que fazer com o amor quando o destinatário não está mais presente? me lembro de assistir a esse diálogo de fleabag em 2020, algum tempo antes do falecimento do meu avô materno e em meio a todo o caos daquela época. a cena ficou comigo desde então e, para mim, essa sempre será a maior questão e o maior desafio do luto.
para ser totalmente honesta, não perdi ainda pessoas muito próximas, apesar de ter chegado perto disso algumas vezes, com meu pai. talvez seja por isso que não lido bem com essa temática e fico tão abalada com as tragédias do mundo e as que acontecem ao meu redor.
talvez tenha a ver com as minhas questões neurológicas de processamento sensorial, mas esse assunto fica para outro dia.
o dia em que a maggie, minha cachorrinha, faleceu, foi um dos piores da minha vida inteira. talvez soe bobo para quem nunca teve um bichinho, mas foi a minha primeira grande perda e nada, nem ninguém, te prepara para esse momento. ela viveu comigo todo o drama da adolescência, a faculdade, até a vida adulta. foi minha primeira cachorra e a melhor do mundo, a falta dela ainda dói.
eu moro longe e minha mãe não conseguiu me contar, era o luto dela também. foi o pedro, meu namorado, quem me deu a notícia, tentando suavizar a situação me trazendo meu bolo favorito.
não adiantou muito, mas não esqueço o cuidado que ele teve comigo naquele dia, não sei como teria sido sem isso.
maggie deixou pra gente a amy, filha dela e tão carinhosa quanto. tive muita sorte.
meu avô foi uma das pessoas mais criativas que eu conheci. quando alguém visitava, ele logo pegava a viola pra tocar alguma música inventada, contar piadas e histórias de vida. estava sempre alegre e lembrava decorado o cordel do “pavão misterioso”. a meta dele era completar os 100 anos e todos achávamos que era o que ia acontecer.
ainda me lembro dele toda vez que como doce de leite depois do almoço, “porque faz a água ficar mais doce”, como ele dizia, ou quando toca marjorie, música da taylor que toquei dedicada a ele, em meio a lágrimas, no dia em que se foi. pude ouvir essa ao vivo, alguns anos depois, e foi nele que pensei o tempo todo.
meu avô nestor foi internado naquele fim de 2020, aos 89, por conta de um câncer. minha mãe teve que viajar e acompanhar ele no hospital por um tempo, e foi assustador. sei que ele viveu uma vida longa, plena, mas desde então não tive coragem de ir até a casa em que ele vivia. além das muitas centenas de quilômetros, tenho medo do vazio que ficou depois da partida dele, do silêncio do instrumento que embalou as férias de verão da minha infância e que não vai voltar a tocar.
a culpa que vem junto é uma das piores partes. sempre sinto que poderia ter feito mais, dedicado mais tempo, mesmo sabendo que fiz o que podia, com as ferramentas que tinha.
sinto isso até com a minha família viva, numa espécie de luto antecipado, e isso é muito esquisito: sentir que aos poucos as pessoas vão escapando pelas veias do tempo, envelhecendo e adoecendo, num processo ininterruptível derivado do estar vivo.
penso muito também no luto que não vem de uma morte real, mas do perecimento de algo ou alguém num mundo individual. explico: alguns fins requerem a passagem por todos os estágios de negação, raiva, barganha, depressão, aceitação, e parece o fim do mundo. realmente é, porque aquele mundo deixa de existir, em tempestades, terremotos e chuva ácida derramada no travesseiro.
depois, há calmaria e estranheza, a peça perdida do quebra-cabeças que não encaixa mais na figura e, quando a gente encontra, não precisa mais dela. olivia traduz isso em “stranger” [guts (spilled), 2024], como “a melhor coisa que eu vou manter bem longe da minha vida”, eu diria que pode ser a pior também.
mas o que é o luto senão puro amor engarrafado, quando não há alternativa outra a mantê-lo assim? senão uma coleção de ausências e fragmentos do que já foi e não voltará a ser, por mais ânsia e dor que se tenha?
uma nuvem que nunca vai embora e insiste em chover mesmo quando o sol brilha fora da janela.
com certeza, vocês ouviram sobre o caso da juliana marins, a jovem que caiu no monte rinjani, na indonésia e depois de dias, infelizmente, não resistiu.
conheci a juliana em 2016, no primeiro período de faculdade, quando tudo era novidade e ela, como eu, navegava a aventura de morar sozinha em outro estado pela primeira vez. não fomos próximas, talvez tenhamos feito um trabalho ou outro em grupo, lembro de uma tarde em que fomos na casa de uma colega pra isso.
me lembro que a juliana era divertida, e estava sempre sorrindo, todos os dias. admirava a leveza com que ela levava a vida. depois daquele semestre, ela voltou para o rio para estudar comunicação e não fiquei sabendo de mais muita coisa. até o dia do acidente.
fiquei o tempo todo presa nas notícias, atualizando as redes sociais e esperando, com angústia e esperança, que tudo se resolvesse e que ela ficasse bem. não é exagero quando digo que quase não dormi durante aqueles dias, foi tudo muito assustador e, como eu disse antes, sempre me abalo muito com esse tipo de coisa. é mais bizarro ainda quando a gente conheceu a pessoa.
me cobria à noite pensando no frio que ela deveria estar sentindo, brincava com meu cachorro imaginando se ela tinha um animalzinho esperando por ela em casa. provavelmente ela nem lembrava quem eu era, e sei que muita gente que nem a conhecia se comoveu também. doido como pessoas podem ter esse efeito umas nas outras.
a notícia trágica me causou uma tristeza infinita, e uma catarse que eu debati muito colocar em texto (esse aqui), mas não conseguia parar de pensar sobre.
apesar da dor, gosto de imaginar que quem se vai fica fragmentado em todas as coisas que ama, tipo poeira estelar ou um glitter que contamina tudo o que toca e você nunca consegue se livrar completamente. vários pedacinhos em cada pessoa deixada, pra nunca esquecer.
essa edição foi mais longa, e faz um tempo desde a última, vou ter que filtrar as recomendações:
no tema, as artes da
sobre luto no instagram, que me fizeram ficar pensando e pensando e pensando
no último sábado, fui em um festival em que a liniker era uma das atrações principais, o que me levou a ouvir bastante o álbum caju (2024), que é bom demais. meio atrasada nesse hype, mas vale a pena!
o livro just for the summer da abby jimenez (até o fim do verão, em português) foi o escolhido para a leitura do mês de junho no clube do livro de que eu participo e esse me pegou em um lugar muito sensível. a protagonista tem uma reação aos traumas que faz ela se isolar no que ela chama de “ilha” (metaforicamente falando), em que não deixa ninguém entrar. acabei me identificando mais do que gostaria.
tem também esse trecho sobre amor que é muito real e, pelo que eu soube, a abby escreveu no celular na fila do mercado, depois de olhar pro marido dela.
acho que por hoje é o suficiente? talvez tenha escrito demais, mas provavelmente, ninguém vai ler mesmo.
até a próxima!
EU li!!!! eu sempre vou ler!!!!!!
chorei. o luto é uma coisa tão maluca. algo tão particular, ao mesmo tempo em que é a quintessência da experiência humana. dizem que é o recibo do amor, e é como eu gosto de pensar, embora não signifique que dói menos por isso. é terrível, mas dá uma profundidade pra existência que nada mais consegue, e você passa a entender a vida de um jeito diferente, como um acesso exclusivo.
quando eu tinha 13 anos, meu cachorro foi roubado num dia aleatório, no meio da semana. voltei pra casa e ele tinha sumido. nunca mais encontramos, e essa é, até hoje, a pior coisa que aconteceu comigo. até hoje não é fácil falar sobre. algo quebra dentro de você e você não costuma conseguir consertar. mas você cresce em volta. os cacos ainda machucam, mas aos poucos as coisas deixam de ser só cacos, ou você cresce e eles ficam do mesmo tamanho. de qualquer forma, estão sempre lá. sinta-se abraçada!!!